Naquela tarde de Domingo, o Marítimo derrotou o Boavista por 3-2 e assegurou ingresso para o convívio entre os melhores da Europa.

30 de Maio de 1993. Há exactos 30 anos, o Leão do Almirante Reis, ao leme da Madeira, preparava-se para descobrir o caminho marítimo para a Europa do futebol. Semana indelével, vivida com fervor na Madeira e por toda a imensa diáspora madeirense. Foi um rugido que deu nós aos meridianos, transformados numa rede de pesca lançada à UEFA. Com o espírito e audácia dos marítimos, faltava domar a “pantera” e desfraldar a bandeira do Marítimo entre os grandes da Europa. Naquela tarde, os rapazes liderados por Paulo Autuori recebiam o Boavista. A maior epopeia de uma equipa insular portuguesa estava a uma vitória de distância.

Quem viveu esses tempos, e com idade suficiente para recordar aquele já longínquo 15 de Maio de 1977, estabelece imediatas comparações. A Madeira fervilhava, especialistas reviam teses sobre a actividade vulcânica da ilha, alegadamente extinta. E com razão: Domingo, no Caldeirão, previa-se erupção. Respirava-se em contagem decrescente para a peregrinação aos Barreiros, a grande odisseia do Marítimo era tema de conversa em todo o lado, razão para preces e promessas à luz de velas que se acumulavam no Monte e no Terreiro da Luta. A Madeira, através da sua maior instituição, queria voltar a esticar o mapa do “velho continente” aos filhos do Atlântico.

O Club Sport Marítimo a caminho da Europa: o orgulho de um povo.

O grande dia chegou. Horas antes, as imediações do Caldeirão já reuniam milhares. Ensaiavam-se os cânticos, afinavam-se as garantas, preparava-se a festa. A entrada dos “nossos maravilhas” para o aquecimento suscitou o primeiro momento de euforia, enquanto o Sr. José, “o velhinho do Marítimo”, percorria o Estádio com livre-trânsito, sempre com aquele traje de gala com que o víamos a vender fruta na Rua João Tavira. Ser do Marítimo é uma efeméride diária e não havia melhor intérprete dessa paixão como o Sr. José.

Enquanto os atletas aqueciam, ranchos folclóricos sublimavam as tradições madeirenses e voavam pequenos panfletos que já haviam invadido a cidade durante a semana. A mensagem mobilizava as hostes para a batalha em nome de todo um povo, uma frase espontânea do Presidente Rui Fontes que se tornou mantra verde-rubro: “Vamos a eles”. Pouco antes de se iniciar a partida, largada de pombos, tal como havia acontecido em 1977. Depois, aquela voz que parecia emergir de tempos imemoriais ribombava: “Aí vem o Marítimo”. Era o transe, a multidão toda de pé a ovacionar “os endiabrados campeões das ilhas” liderados pelo Capitão João Luís. Saudava-se o Marítimo, exaltava-se um destino que, todos acreditavam, se cumpriria nas duas próximas horas. Antes do apito inicial, um minuto de silêncio que parecia impossível. Com reverência e comoção, o Caldeirão calou-se em memória de António Alves Tremura, o nosso ‘Chino’, que nos deixara 5 dias antes. Artífice maior da gloriosa História do Marítimo e obreiro daquele “Raul, Chino e Checa”, um tridente lendário que os Maritimistas nomeiam em jeito de oração. Os mais crentes sabiam que o espírito de Chino pairava sobre o relvado.

Vítor Pereira foi o árbitro daquele jogo que assumiria contornos dramáticos, mas com final feliz. O Marítimo alinhou com Ewerton na baliza, José Pedro na direita e Heitor à esquerda, aos quais se juntava a dupla de centrais composta por João Luís e Valido. Humberto actuava a “trinco”, à frente dos centrais e na rectaguarda do pequeno Vado das artes mágicas. O ataque desenhado por Paulo Autuori era uma máquina industrial de golos, com Gustavo e o “trio-maravilha”, a nova santíssima trindade dos devotos maritimistas: Ademir, Edmilson e Jorge Andrade.

O Maior das Ilhas partia para a penúltima jornada do campeonato com 53 golos marcados, um pecúlio só superado – e por pouco – pelos 3 crónicos candidatos ao título. Do outro lado, Manuel José preparou um “xadrez” que procurava anular a versatilidade do posto avançado insular, mas foram sempre do Leão as investidas contra a “pantera”. À passagem dos 30 minutos, mantinha-se o nulo no marcador. O Boavista, equipa pejada de talentos como Ricky, Marlon Brandão e Artur, sustinha os ímpetos verde-rubros, mas nada pôde fazer quando Edmilson arranca, Jorge Andrade “prende os centrais”, Edmilson combina com Ademir que, com um toque subtil, devolve ao compatriota. Com aura de ungido que separa as águas do Mar Íntimo, Edmilson deixa toda a defesa boavisteira para trás e, à saída de Lemajic, atira para o êxtase do Caldeirão. Estava aberto o caminho para a Terra Prometida. O Marítimo estava em vantagem aos 32 minutos. A Europa estava cada vez mais perto.

O Boavista, porém, não era presa fácil. Ricky, aos 36 minutos, bateu Ewerton e empatou a partida. As imagens desse lance são elucidativas. A bola esteve menos de um segundo na baliza do Marítimo, tudo porque o apanha-bolas, situado atrás das redes, logo a pontapeou para o terreno de jogo. Aquele apanha-bolas, guardião oculto do nosso território sagrado, transmitiu uma mensagem: não há tempo a perder. Vamos a eles.

O intervalo chegou com o empate a uma bola e o início da segunda parte trouxe o calafrio que se entranhou nos ossos: Ricky voltou a marcar, após um remate que embateu num defesa insular e traiu Ewerton. Segundos de silêncio, de incredulidade. Depois, a recção do Caldeirão: aquela gente, atónita e combalida, logo repôs a verticalidade de um tronco habituado às agruras e inchou a peitaça como os miúdos da “mergulhança” que sabiam ir ao fundo e voltar a tempo.

Paulo Autuori arriscou tudo e lançou Paulo Alves para o lugar do central João Luís. Ganhar não era uma possibilidade: era um desígnio. Manuel José, pelo contrário, reforçou a muralha defensiva, estratégia frutífera até muito perto do fim.  A vantagem era muito lisonjeira para os forasteiros, mas a justiça também acontece no futebol. O tempo da razão parecia esgotado. Restava o tempo da crença. O Marítimo acossava o Boavista, encostado às cordas, mas a resistir. Até que o Marítimo conquista um canto do lado direito. Aos 86 minutos, Heitor partiu em contra-relógio para a zona da marcação, provocando um efeito de transe entre os Maritimistas. Acreditava-se. Se havia impossíveis, Heitor era o homem certo. Ao seu estilo inigualável, o brasileiro enfeitiçou ainda mais a bola, iludindo Lemajic que não a segurou. Sobre a linha de golo, Ademir encostou para o empate. Foi a loucura nos Barreiros, mas ainda faltava tudo.

A bola já está dentro da baliza “axadrezada”. O Marítimo empatava aos 86 minutos por Ademir.

O Boavista reiniciou a partida, mas a “pantera” estava ferida e com medo. Tinha razões para isso. Os rapazes de Autuori lançaram-se numa ofensiva desenfreada, muitos leões famintos em busca da bola. Não foi só a equipa do Marítimo a recuperá-la. Foi todo um povo que a cedeu a José Pedro, foi todo um povo que executou aquele cruzamento para as imediações da área, foi tudo um povo que subiu ao Pico Ruivo para ajudar Paulo Alves a desviar de cabeça, foram todos os marítimos desde 1910 que reincarnaram em Ademir para desatar o nó que faltava. A bola estava dentro da baliza do Boavista. O Club Sport Marítimo acabava de ancorar na Europa do futebol.

Paulo Autuori aos ombros dos seus atletas.

O resto é História.

Obrigado, rapazes.

Os heróis da ascensão do Marítimo à Europa do futebol